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terça-feira, 10 de setembro de 2013

Prólogo






Acordou dentro de uma grande clareira no meio da escuridão, onde a única fonte de luz provinha de clarões que chegavam e partiam esporadicamente por breves segundos. Estava tremendo de frio e, em cima do chão gelado formado por rocha áspera, sentia vergonha por estar completamente nu. No entanto, esse não era o seu maior problema. Não tinha a menor ideia de como havia ido parar ali e por mais que se esforçasse para lembrar, a memória falhava toda vez que tentava.
A noite reinava no céu jogando sem perdão um negro véu sobre tudo o que vinha abaixo, o que exigia do garoto um grande esforço para enxergar as imediações ao redor. E mesmo com a dificuldade, decidiu se levantar, pois ficar ali seria ainda pior. Deu alguns passos e semicerrou os olhos com a intenção de reconhecer o local, levando-o a tropeçar em algumas pedras ao longo do caminho enquanto praguejava de dor. Mas quando finalmente acostumou-se à escuridão, percebeu que um penhasco se elevava alto a sua frente a poucos metros. Junto dele, paredes rochosas seguiam para os lados, tanto à direita quanto à esquerda, formando um cerco acompanhado de uma vegetação morta de arbustos que não lhe permitiam ter visão para nada além deles. Estava perdido, concluiu enfim.
Por um momento o garoto não soube o que fazer, e só lhe restou ficar ali, contemplando com a cabeça erguida, o gigante de pedra que bloqueava seu caminho enquanto ele se escondia e voltava a aparecer - como uma criança se divertindo numa brincadeira de esconde-esconde – graças aos flashes de luz originados de algum lugar distante que recaíam sobre o corpo deformado. Não mais alto do que um prédio de dez andares, o penhasco parecia meio úmido, e musgos e lodo brotavam de fendas ao longo do seu corpo desgastado pelo vento e o tempo. Tinha um aspecto fantasmagórico, dando a sensação de que a qualquer momento moveria uma perna de pedra para pisar em sua cabeça; mas nada aconteceu.
Observando-o, notou que qualquer um que desejasse chegar ao topo deveria enfrentar uma árdua e perigosa subida, e soube de imediato que isso se aplicaria a ele, pois apenas de lá de cima poderia ter uma visão melhor de tudo.  Para tal, precisava voltar um pouco, contorná-lo e tentar subir por trás, pelas costas, por meio de uma encosta não muito íngreme, mas que tomaria certo tempo, exigindo dele paciência através de um caminho acidentado, com pedras soltas, cortantes, e até mesmo escorregadias.
À medida que subia, o vento soprava cada vez mais forte, com o caminho obrigando o garoto a seguir às vezes para direita e outras para a esquerda. A luz agora vinha com mais frequência e a subida ficara menos complicada, contudo, ainda perigosa, exigindo o auxílio das mãos em alguns pontos para não escorregar. Além disso, seus pés doíam enquanto tentava mantê-los firmes nas pedras, e toda vez que olhava para baixo, sentia uma onda de tontura por conta da terra que se afastava gradativamente. Todo gesto exigia cautela, e qualquer movimento errado o levaria de encontro às pedras abaixo de si numa queda da qual rolaria sem parar, custando-lhe todos os ossos do corpo. Porém, ao fim, ele conseguiu vencer o gigante. E ali, no pico, ofegante e suado, sentiu-se aliviado por aquilo ter terminado. Poderia, finalmente, descobrir onde se encontrava; ou assim pensava.
Do topo foi difícil explicar com palavras tudo à sua frente, e se pudesse definir em uma palavra o que chegava a seus olhos, chamaria de inferno. O mundo parecia ter sido tomado pelo caos, ao mesmo tempo muito barulhento e desesperador. Uma águia sobrevoava - enquanto piava alto - aquelas terras ao longe, e contemplava como ele um mundo consumido pelo sofrimento, onde as trevas tomavam sua forma mais tenebrosa, e a esperança, um daqueles elementos de contos de fadas que, no fundo, não passam de uma consolação para os terrores do mundo real.
O lugar era uma vasta terra em erosão, fria, com muitas rachaduras e de terreno pedregoso, que se estendia até aonde os olhos conseguiam alcançar. A escuridão tingia um céu sem estrelas que nunca recebia a luz do sol, dando-lhe um tom oscliante entre o negro e o obsidiano. Desta maneira, não havia planícies verdes, e muito embora nada crescesse, um negro rio solenemente serpenteava abrindo caminho por onde passava, rasgando solo e dividindo a superfície em dois lados para dar imagem a um grandioso vale.
Esse mesmo vale era engolido por altas montanhas - tanto a leste quanto a oeste –, acompanhado por uma perseguição na qual elas revezavam como numa competição, erguendo-se mais alto o que podiam; em certos pontos, elevavam-se mais altas à esquerda do que à direita, ao passo em que outros, faziam totalmente o inverso. E assim, tão grandiosas quanto titãs, procuravam beijar o céu em um amor não correspondido, recebendo nada além de uma eterna espera em resposta e transformando-as em tristes formações escuras e sem vida.
O vale parecia ser tão fúnebre que o garoto conseguia sentir o odor da morte emanando pesadamente contra o seu rosto; um cheiro nauseante trazido pelo vento de coisas, provavelmente, em decomposição, e principalmente de um líquido negro, borbulhante e viscoso que fervia no interior de diversos fossos, como piscinas escaldantes, localizados ao longo daquelas terras. Para seu espanto, dentro deles, pessoas eram completamente pintadas de negro enquanto gritavam de pavor e agonia, ao mesmo tempo que seus olhos suplicavam por alguma ajuda que nunca viria; também podia-se ver outras caminhando lentamente, mas que não pareciam se importar com a aquelas dos fossos ferventes. Todas em completo estado de miséria, com a aparência fatigada e nuas como o garoto, deslocando-se meio que arrastadas em movimentos que pareciam consumir suas forças.
Aos olhos do garoto, que não era alto e não passava dos dezessete anos, toda aquela gente não sabia exatamente o porquê de estarem ali, e talvez por isso parecessem sofrer ainda mais. Caminhando de forma única e desordenada, como zumbis, iam sempre com destino ao norte, sem algum objetivo ou perspectiva, tanto homens quanto mulheres; até mesmo crianças. Apenas transpareciam expressões de medo e sofrimento, apresentando olhos opacos e sem vida, de fundas olheiras, e corpos que mal possuíam forças para se movimentar. Às vezes, ajoelhavam-se ao chão e pareciam rezar; outras que, quando caíam, começavam a chorar; e em certos momentos, havia aquelas que, assustadoramente, jogavam-se em precipícios preenchidos por labaredas ao fundo, onde algo como um córrego de fogo encontrava-se.
Esta última visão chocou o garoto profundamente. De tal modo, que sentia-se na obrigação de impedir toda aquela gente de se jogar naquele inferno das entranhas da terra, onde canais incandescentes formavam extensos cânions próximos ao pé das montanhas, seguindo por vários quilômetros. Do fundo, eles cuspiam chamas azul-escuras que subiam em direção ao céu e tomavam para si todos os corpos que de tão boa vontade iam ao seu encontro; queimavam-nos sem lhes deixar alternativa de nem ao menos solta um grito de dor até nada restar de suas existências além das cintilantes cinzas azuis flutuantes e dispersas no ar.
Não é possível um lugar assim existir no mundo, pensou o garoto. Como permitiam tais atrocidades? Por todos os cantos havia pessoas em sofrimento; centenas, milhares, vindas sem ele saber de onde, como se brotassem da terra para continuar a lotar o vale. Tinha vontade de acabar com tudo aquilo, mas não fazia ideia em como. Aliás, o que um ninguém como ele poderia fazer? Só poderia estar brincando pensar ser capaz de mudar o mundo de horror bem diante dos seus olhos, do qual o sofrimento parecia ser a única forma de vida. Logo ele, alguém incapaz de enfrentar os próprios temores.

De repente, uma rajada de vento soprando fortemente do norte ouriçou seus cabelos castanhos e cacheados - que cresciam para todos os lados -, e interrompeu seus pensamentos. Com certa dificuldade, da mesma direção, o garoto pôde avistar ao longe uma grande estrutura próxima às montanhas a noroeste, não muito distante da margem do rio.
Lá, um templo em estilo grego, aparentando ter sido construído à base de onixes, com altas colunas à entrada, reluzia hipnoticamente à luz produzida pelas labaredas dos cânions. Ao seu redor, uma extensa muralha de pedra se elevava para protegê-lo, de modo a ser possível exergar apenas o telhado e a abóboda acima, enquanto estranhas criaturas de corpos esguios e pele escura como carvão voavam ao redor de todo o complexo, envergando suas grandes asas negras de morcego em um lento movimento. Por um momento imaginou quem poderia morar em tal lugar. Mas, no fundo, ele não desejasse saber realmente.
Desviando a atenção do templo, ocorreu ao garoto novamente o porquê de ter ido parar ali. Era tudo muito confuso e não sabia o que havia feito para merecer aquilo. Teria cometido algum crime? Estava ficando louco? Onde estava sua mãe e seus amigos, sua casa, seu bairro?  
E a partir disso o desespero começou a tomar conta de si. Sentiu como se quisesse gritar até os pulmões explodir, e transtornado, não sabia o que fazer. Lágrimas começaram a brotar de seus olhos enquanto corria de um lado para o outro tentando evitar todo o horror ao qual era obrigado a presenciar. No entanto, não importava para onde olhasse, a visão era sempre a mesma: sofrimento.
Derrotado, largou-se ao chão de joelhos e contemplou o céu em uma busca inútil de fugir de tudo, muito embora a negritude acima de sua cabeça não ajudasse realmente, porque as trevas eram só o que lhe restava.
Foi então que, pouco a pouco, uma confusão de pensamentos começou a tomar conta de sua mente. Estava fraco e, lentamente, ele se viu obrigado a sentir uma mistura de sentimentos ruins que raramente havia sentido na vida, como ódio, vingança, rancor, inveja e dor; todos misturados a uma espécie de medo que se apossava de sua alma e o preenchia rapidamente. Não conseguia lutar contra aquilo. Não tinha forças. Apenas deixou-se levar pelo estado sufocante daquilo. Era mais fácil desse jeito; sentir como se sua alma estivesse sendo corroída, perdendo as forças e, gradativamente, a vontade de viver.
Aquilo, sem saber explicar, parecia estar domando e convencendo-lhe de que a vida não importava mais. Nada havia mais sentido. E, rapidamente, foi tomado por um estado de transe, desejando a paz que apenas a morte poderia proporcionar. Aliás, sentia como se todos os sentimentos negativos daquele lugar, de alguma maneira, estivessem se apossando de seu coração, tornando o desejo suicida nada mais do que o certo a se fazer, sem ao menos conseguir diferenciar o certo do errado. Até porque a morte seria pouco para ele, pensava.
É isso o que todas essas pessoas estão sentindo?
Então decidiu se levantar e, cambaleante, voltou a atenção, com os olhos sem brilho, para o incompreensível mundo à sua frente.  Para sua surpresa, a resposta para dar fim àquela agonia e sofrimento acabara de aparecer bem diante de si. Um abismo tão profundo surgira ao pé do penhasco que era impossível enxergar o seu interior. Onde está a clareira? Isso não existia aí.
E não existia mesmo. Todo o vale de antes, com todas as pessoas em sofrimento, cânions, castelo e córregos de fogo, simplesmente haviam desaparecido. Agora, era apenas um mundo escuro, habitado só por ele e o abismo à frente do penhasco. Talvez eu esteja ficando louco.
Não importava. Até porque era perfeito.
Só alguns passos e tudo estará terminado.
O garoto se postou diante do abismo, olhou para o fundo e nada viu. Lá de dentro, no interior habitado apenas pelas trevas, ele encontrou a sua resposta. Algo lhe dizia que era o certo a se fazer, já que sua vida não valia mais de nada a não ser causar sofrimento a todos que o rodeavam. Até sentiu uma presença à sua frente, como se o abismo estivesse vivo, como se entendesse tudo dentro de seu coração.
Sorriu. Então é assim como as pessoas dos cânions se sentem.
Momentos depois, ele já estava certo sobre a decisão de mergulhar, pois alguma coisa mexia com seu coração; algo estava influenciando-o. Uma força invisível que ele não compreendia e não tinha poder para combater. Estava chamando-o, atraindo-o como um inseto desejoso por alcançar a luz. Mas era o certo a se fazer, não era? Então por que hesitava?
Covarde!
Mergulhe, pensou escutar de repente. Mas não algo vindo de fora, do mundo a sua frente. Vinha de dentro. De dentro dele… e não era ele!
Estacou. Sabia o que o impedia de se jogar. Quem quer que ousasse cair ali dentro, não teria nada além de dor e sofrimento eternos.
Sorriu novamente. Certamente é perfeito.
Mas o que estava dizendo?!  Estou louco!
E decidiu pular. Contudo, foi impedido por um amontoado de penas surgidas do nada bem à frente de seu rosto, e por reflexo, foi obrigado a se lançar alguns passos para trás, desequilibrado.
Atordoado, o garoto viu, mesmo em meio aquele ambiente escuro, que a confusão de penas pertencia a uma grande águia, postada entre ele e o abismo, que bloqueava seu caminho. Ela agitava as asas freneticamente para tentar se manter estável no ar e olhava-o fixamente nos olhos.
Durante os breves segundos em que os dois mantiveram aquela troca de olhares, pareceu nada mais importar para o garoto. Foi como se estivesse voltando a ter controle sobre seu corpo, e ela, com sua beleza e grandeza, estivesse livrando-o de todos os sentimentos ruins que vinham se apossando dele.  
Com um desejo incontrolável de tocá-la, ele foi em sua direção. Entretando, não obteve a melhor das respostas, pois ela avançou ferozmente em ataque erguendo as grandes garras afiadas. O garoto só teve tempo de tentar se proteger com os braços para impedir que ferisse seus olhos. Mas, curiosamente, nada sentiu. Não havia nenhum ferimento. Em vez disto, ali, envolvido, foi tomado por outra coisa. Algo que veio acompanhado de um som estridente ressonante no ar, mais parecido com um pio agudo; algo que o atingiu fortemente no coração como se milhões de agulhas estivessem atravessando-o.
Caiu ao chão de joelhos em seguida, pois não conseguiu suportar continuar de pé tamanha foi a intensidade daquilo. Era uma dor e ao mesmo tempo não era; pelo menos não fisicamente.
Confuso, olhou à frente. E foi quando a viu. A águia, antes de olhar confiante e severo, agora vestia uma máscara de puro terror, pois fios negros, semelhantes à sombras, prendiam seu corpo e rapidamente envolviam-no, voando para cima dela, um após o outro, originados do fundo do abismo. Eles apertavam fortemente e, em poucos segundos, imobilizaram-na por completo.
Em contrapartida a ave piava alto de dor e tentava se desvencilhar, mas sem obter sucesso. O garoto até tentou fazer alguma coisa, mas tudo foi tão rápido demais, que ele não teve tempo nem de mover um dedo, porque, com um movimento brusco, ela foi tragada para o interior do mar de escuridão lá embaixo se perdendo nas trevas.
O breve acontecimento fez o garoto se sentir como se tivesse perdido uma parte de si, uma fração de sua alma, mesmo sem entender o porquê de todo o afeto adquirido pelo animal. E sem ele por perto parecia voltar a provar de todos os sentimentos dos quais havia se livrado, perdendo-se, novamente, naquele estado onde a morte enviava seu doce convite para um abraço frio.
Como é frágil e tolo, mortal, pensara o garoto escutar. Sabia o que era agora. Era o abismo! E falava com ele. E de dentro para fora!
Um vento soprou friamente contra seu rosto vindo do interior em seguida. A sensação fez sua espinha tremer e atravessou sua alma, dando-lhe finalmente a certeza de que algo lá dentro continha uma espécie de vida, e clamava por ele. Teve vontade de xingá-lo para liberar todo o ódio, mas também de se jogar e abraçar qualquer coisa que houvesse ali. Estranhamente, a segunda opção pareceu mais atraente, levando-o, enfim, a postar o pé direito sobre a beirada fronteiriça daquilo.
No mesmo instante conseguiu sentir a satisfação da coisa em lhe possuir e, no entanto, sem compreender o porquê. Por que lhe desejava tanto? Alguém sem nada de especial ou precioso em seu poder; alguém simplesmente normal.
Entretanto, nada importava mais. Livrou-se de todas as dúvidas, fechou os olhos sem questionamentos e se entregou ao abismo, enquanto lágrimas escorriam pelo branco rosto devido ao pesar que causaria a todos que o amavam.
E para a sua surpresa, algo o impediu antes de se jogar. Uma delicada mão segurou-lhe pelo ombro direito e puxou-o de volta, impedindo-o de cair nas trevas. Rapidamente, o garoto foi invadido por uma paz arrebatadora que o livrou de todos os sentimentos ruins os quais fora induzido a sentir, deixando seu coração tão leve como nunca havia o sentido na vida. Tudo pareceu girar e aquele mundo se esvaneceu por completo, como fumaça dispersa no ar, onde, no momento seguinte, foi substituído por um par de olhos castanhos e doces que o admiravam de cima.

- Hora de ir para a escola, Douglas – disse sua mãe olhando-lhe nos olhos enquanto tentava fazer o garoto levantar da cama.

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